A recente decisão do
Conselho Federal de Medicina (CFM) favorável ao aborto até a 12.ª semana de
gravidez, dependendo apenas da vontade autônoma da mulher, dá-nos a ocasião
para tratar mais uma vez desse tema. Ouso escrever novamente sobre o assunto
mesmo porque o silêncio poderia sugerir falta de argumentos, e isso não é
verdade. Por falar nisso, tratemos de alguns argumentos favoráveis ao aborto.
O aborto seria aprovável até
a 12.ª semana de gestação porque o tubo neural do feto ainda não se formou?
Assim, a sua condição equivaleria à de um morto cerebral? Mas se assim fosse,
como justificar os estudos e práticas de psicologia e de psiquiatria que se
ocupam da vida humana desde uma fase bem anterior a 12 semanas de gestação? A
condição de um morto cerebral nunca pode ser equiparada à de um feto, que está
em plena dinâmica vital.
Na vida humana, não se pode
estabelecer uma fase que já não seja humana desde o seu primeiro início, na
fecundação. Aquilo que aparece na 13.ª semana já existia também desde a primeira
semana de gestação: um ser humano vivo. Embora ainda não esteja completo, ele
já existe em sua identidade humana, que não se inicia somente na 13.ª semana de
gestação.
Legalizar o aborto
valorizaria a autonomia da mulher e o respeito pela sua decisão livre? A
questão não está bem colocada. A decisão não envolve exclusivamente a mulher,
mas também a vida de mais um ser humano; e a liberdade de um não pode
prejudicar o direito do outro. O feto ou bebê, enquanto é gerado, não é parte
do corpo da mulher, mas já é um outro ser humano, que tem o direito de viver e
de ser amado.
O aborto implica a supressão
da vida de um ser humano e esse ato não pode ser considerado um direito de
ninguém, nem valorizaria a dignidade da mulher. Sabe-se quantas consequências e
quantos sofrimentos, inclusive psíquicos, esse ato causa à mulher. O sofrimento
de uma gravidez indesejada ou difícil pode ser aliviado e não pode ser
equiparado ao dano causado por um aborto, sobretudo porque se trata de uma vida
suprimida.
Afirma-se que o Estado
brasileiro é laico e não deveria levar em conta argumentos de tipo religioso.
Esse é um sofisma frequente e mal esconde uma discriminação religiosa contra o
direito à livre manifestação dos cidadãos. Além disso, os direitos humanos
independem de religião e valem para todos, tanto como benefício quanto como
imperativo ético. No caso do aborto, não se trata de questão religiosa, mas do
mais elementar direito humano à vida.
Países desenvolvidos seriam
favoráveis ao aborto e só os obscurantistas, fundamentalistas e fanáticos
seriam contrários à sua aprovação. Será mesmo? Dar aos adultos e fortes a
possibilidade de dispor da vida de indefesos e inocentes, até ao ponto de
suprimi-los, não parece um sinal de verdadeiro desenvolvimento, mas de retorno à
lei da selva.
O bem da sociedade
justificaria a eliminação dos indesejados, dos defeituosos e doentes, das
"vidas inviáveis" antes mesmo de nascerem? Foi com semelhantes
raciocínios, habilmente apresentados, que regimes totalitários, cruéis e
desumanos eliminaram milhões de seres humanos considerados inferiores ou não
dignos de viver.
A maioria das pessoas seria
favorável ao aborto? Isso requer uma verificação séria, pois não parece
verdade. Mesmo se fosse, o direito de matar pessoas não pode ser submetido à
vontade da maioria; há coisas que independem de consenso por serem verdades ou
direitos inalienáveis. Ninguém pensaria em submeter a uma decisão consensual o
direito a respirar, comer ou dormir. Muito menos ainda, o direito de viver!
A violência sexual, que
viola a "dignidade sexual" da mulher, ou certas situações de
injustiça social, que dão origem à pobreza, legitimariam, talvez, o aborto? O
problema é que, dessa forma, se decretaria de maneira simplista a pena de morte
contra um ser humano inocente e indefeso, em vez de atingir os verdadeiros
culpados por injustiças e violências.
Fala-se que há males que vêm
para bem. Assim, mesmo admitindo que o aborto seja um mal, considera-se que
dele resultaria um bem, pois se evitariam os sofrimentos de "vidas
inúteis", o fardo social de seres humanos improdutivos, o aumento da
pobreza e a temida explosão demográfica. É preciso lembrar, contudo, que os
fins não justificam os meios. Os males sociais e os da saúde precisam ser
enfrentados, mas jamais mediante a negação do direito à vida das pessoas.
Diz-se ainda que os países
mais desenvolvidos já liberaram o aborto e a não legalização dessa prática
seria um sinal de atraso. Por certo, o descontrole na prática do aborto em
clínicas especializadas, ou por mãos inexperientes, é um sinal de atraso e de
pouco respeito à vida humana ou à lei que a protege. A solução seria, então, a
legalização do aborto? Não o seria, antes, mediante uma atenção maior à saúde
das gestantes e à educação para comportamentos sexuais dignos e responsáveis,
sem o recurso à fórmula simplista e inaceitável da supressão de vidas indefesas
e inocentes?
Não é por demais inglório
manifestar-se sobre essa questão antipática, recebendo o carimbo de
"conservador" e "mente fechada"? Dia mais, dia menos, o
aborto será aprovado; existem pressões muito fortes sobre os legisladores e
diversos interesses estão em jogo. Vale mesmo a pena? Eis o problema. A questão
delicada da dignidade humana e do direito à vida é demasiado séria para ficar
refém da pressão ideológica.
Não é questão religiosa, mas
de direitos humanos. Só haveria uma maneira de mudar essa visão: se fosse
provado, de maneira convincente, que o feto ou o bebê ainda não nascido não é
um ser humano. Mas esse é um outro discurso, longo e complexo. Afirmamos que é
um ser humano e, portanto, seu mais elementar direito, que é viver, não lhe
deve ser negado.
Publicado em O ESTADO DE
S.PAULO ed. 13/4/2013
Cardeal dom Odilo Scherer
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