A Bíblia se formou muitos séculos antes de Cristo, num
processo histórico da relação do povo hebreu (posteriormente judeu) com Deus
que se revelava. Neste desenvolvimento gradativo, certos episódios e
pronunciamentos tomavam expressão de destaque e iam sendo transmitidos de
geração em geração em primeiro lugar oralmente, depois foi sendo feito o
registro de maneira flexível, com variações, adaptações, cortes e acréscimos,
sem que houvesse um peso de canonicidade.
Só a
partir da época do exílio da Babilônia a ideia de cânon começou a se delinear
e, mais precisamente em 621 a.C., com a descoberta do “Livro da Lei” no Templo
de Jerusalém no reinado de Josias, ela foi começando a se estruturar de fato. O
Pentateuco (os “5 rolos”, a famosa Torah:
Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) já estava composto mas não
tinha um caráter normativo, tanto que não foi citado nas mensagens proféticas
deste período, fato que só ocorreu a partir do século IV com a leitura do Livro
da Lei e sua estipulação de obrigatoriedade pelo sacerdote Esdras (Ne 8).
Os
livros que chamamos de históricos (mas que povo hebreu denominava como
“profetas anteriores”: Josué, Juízes, Samuel e Reis) só foram lavrados no tempo
do Exílio, contudo, apenas receberam status de canônicos pelo século III a.C.
quando começaram a ser lidos nas sinagogas juntamente com os “Profetas”, ou Nebiim (“Profetas posteriores”: Isaías,
Jeremias, Ezequiel e os doze menores). Assim, uma Bíblia Hebraica com duas
grandes partes (a “Lei” e os “Profetas”) já era conhecida neste tempo.
Por
fim, o terceiro bloco, que nomeamos hoje em dia por “livros didáticos” ou
“sapienciais” (cognominado “Escritos” pelos judeus, ou Ketubim), teve delimitação mais vagarosa do ponto de vista da
canonicidade. Nele temos os Salmos (que já eram consagrados pelo uso litúrgico
muito antes de serem recompilados), escritos atribuídos a Salomão (Provérbios e
Cânticos), Daniel e a obra cronística (Crônicas, Esdras e Neemias). Outros
escritos variados eram venerados e lidos e foram incluídos (Jó, Rute,
Lamentações, Eclesiastes, parte de Ester), mas outros com o tempo foram sendo excluídos
do cânon judaico.
Existiu
também uma versão traduzida para o grego desse documento, a conhecida Septuaginta
(LXX) ou Cânon Alexandrino, que era lida e venerada por judeus que não moravam
na Palestina, os judeus da Diáspora. Nesta versão foram incluídos os chamados
livros “deuterocanônicos” (segundo cânon: Sirácida ou Eclesiástico, Sabedoria,
Tobias, Judite, Baruc e 1-2 Macabeus, além de anexos aos textos de Ester e
Daniel). Contudo, essa versão não perdurou entre os judeus e nunca foi
reconhecida como canônica pelo judaísmo oficial (rabínico), logo caiu em
desuso, optando eles por outras compilações gregas.
Assim
se formou o Cânon Judaico das Escrituras, que só foi encerrado no final do
primeiro século da nossa era (no sínodo dos rabinos de Yabné) e vigora até hoje
no judaísmo, sendo tradicionalmente reportado pelo acrônimo TaNaK, que advém
das sílabas iniciais da Torah (Lei), Nebiim (Profetas) e Ketubim (Escritos).
Porém,
se a Septuaginta não “vingou” entre os judeus, foi amplamente adotada pelo
cristianismo nascente como “sua Escritura” (o chamado Antigo Testamento), crescente
e em franca expansão pelo mundo helenizado da época, lida em suas reuniões,
usadas nas pregações e nas catequeses, fato facilmente demonstrável no Novo
Testamento e nos escritos Patrísticos. Por este motivo a Bíblia Católica
(traduzida posteriormente para o latim e denominada Vulgata) é regida pela
tradução dos Setenta, pois era a tradução utilizada pelos primeiros cristãos.
Esta tradução é formada, como se pôde ver pelo relato acima, pela Bíblia
Judaica acrescida dos 7 livros intitulados deuterocanônicos dispensados pelos
judeus na constituição de seu cânon. Aliás, um dos motivos para que estes
tenham dispensado os escritos deuterocanônicos foi justamente o fato de a
Tradução dos LXX ter sido uma versão reconhecidamente identificada com o
cristianismo.
Já na
época da Reforma (século XVI), Lutero retornou ao uso da Bíblia Hebraica (que
não inclui a lista dos 7 deuterocanônicos, os quais ele chamava de “apócrifos”:
úteis e bons para leitura mas, não canônicos) enquanto formativa do Antigo
Testamento da Bíblia Cristã, sob o argumento de que esta teria sido a “Bíblia
do tempo de Jesus”. A questão que ele ignorou é que, no tempo de Jesus, não
havia uma Bíblia Hebraica fechada, definida, com cânon já fixado, fato que só
aconteceu um século depois de Cristo! Para tal entendimento ele havia se
apoiado no fato do próprio São Jerônimo, o responsável pela Tradução Vulgata,
ter a princípio se pronunciado a favor da Septuaginta, mas depois ter defendido
o Cânon Palestinense como único autêntico. Porém o venerável santo também não
tinha exata ciência deste detalhe importantíssimo: na época de Jesus ainda não
havia uma “Bíblia do tempo de Jesus” estabelecida e por isso mesmo a Igreja Primitiva
usava a Versão Septuaginta em sua vida comunitária e em suas atividades missionárias
(como atesta o Novo Testamento).
Em
resposta a toda a ambiguidade gerada no meio cristão por conta desse episódio,
o Concílio de Trento determinou definitivamente o Cânon Católico no ano de 1546
como sendo o da Vulgata, ou seja, o que contém 46 livros no Antigo Testamento,
incluindo a Bíblia Hebraica mais os 7 deuterocanônicos. Desta forma e por estes
motivos, é que as Bíblias Católicas tem 73 livros em seu cânon e as
Evangélicas, 66. O Novo Testamento de ambas contém os mesmos 27 livros, mas
existe essa divergência quanto aos livros do Antigo Testamento, divergência que
tem origem na constituição do Cânon Judaico das Escrituras e no retorno a ele
sugerido pela Reforma Protestante. Esta dissensão perdura ainda hoje entre os
cristãos, embora alguns exegetas protestantes, cientes desses equívocos,
propuseram reconsiderar a inclusão dos deuterocanônicos como parte de suas
Escrituras e algumas edições de Bíblias protestantes já os tragam em blocos à
parte.